Estudando as Seitas Neopentencostais
Extremismo evangélico
Pastores que agem como aiatolás.
Intolerância religiosa nas ruas. Conheça a fúria dos fundamentalistas que
ameaçam as liberdades individuais - e as próprias igrejas evangélicas.
Lúcio Barreto Júnior, o pastor Lucinho,
é uma estrela da Igreja Batista da Lagoinha, tradicional instituição evangélica
de Belo Horizonte. Nos últimos meses, Lucinho pregou na Inglaterra, Espanha e
Luxemburgo. Também foi para o Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraíba. Muitas
das suas pregações têm ingressos esgotados. Ele é uma celebridade evangélica.
Em seu site oficial, Lucinho vende
camisetas com a frase “Com Jesus, venço até Chuck Norris”. Ele também tem uma
linha de DVDs, com títulos como A Verdadeira Tropa de Elite e Treinando um
Louco Por Jesus.
Na igreja da Lagoinha, Lucinho é
responsável por evangelizar jovens e adolescentes, e se apresenta como se fosse
um. Nem de perto aparenta seus 43 anos – usa cabelo espetado e gírias de
quem tem pouco menos de 20 anos. Também faz questão de se definir como um
“Louco por Jesus”, uma versão religiosa do “vida loka” da puberdade. Lucinho
fez dessa definição tanto um slogan das suas pregações quanto um estilo de
vida.
Num vídeo que circulou pelo Facebook
neste ano, o pastor aparece pregando em Belo Horizonte. Logo no começo, Lucinho
diz: “Só vai ter marcha das vadias se você quiser. Só vai ter boate gay, parada
gay, parada dos maconheiros, se você quiser. Outro dia, em Belo Horizonte,
falaram comigo: ‘Lucinho, vai ter a festa do Preto Velho’. Eu falei, ‘ninguém
me pediu. Não aceito. Não vai ter’”. Então ele explica como estragar a festa
alheia. “Cheguei lá no meu grupo de jovens, chamei 20 jovens, falei ‘vamos dar
um B.O. na festa do capeta?’”. Os jovens, para tristeza do pastor, não estavam
dispostos a dar B.O. na festa de umbanda. Mas Lucinho não desiste.
“Então fui no melhor departamento de
qualquer igreja. Fui falar com os adolescentes. Cheguei e falei ‘preciso
de 20 malucos para dar uma busca e apreensão no Preto Velho.’” O pastor diz que
os meninos aceitaram na hora. E passa a gritar com a multidão que ouvia sua
pregação: “Fica velho, mas não fica idiota. Faz faculdade, mas não vira um
retardado mental. Não perde o sangue nos olhos. Não deixa as suas muitas letras
te levarem a delirar. Não vira um palhaço. Não é porque agora está vestindo uma
roupinha engomadinha que não pode dar uma busca e apreensão no capeta”.
Na sequência, ele conta como treinou os
adolescentes ao longo de 20 dias. Eles não podiam causar tumultos e deveriam
seguir as regras da dispersão: “Se der polícia, confusão, FBI, dá o ‘vazari’.
Some”. E conclui: “O mais legal é você pegar gente simples. Você pode desenhar
Cristo na alma deles, melhor do que gente que você tem que desconstruir
para depois construir”.
Missão dada, missão cumprida. No final
do vídeo, o pastor descreve como os adolescentes cercaram a praça, a confusão
com a festa da umbanda, a chegada da polícia e como um dos meninos depredou as imagens. A festa, que deveria ir até as 6h, acabou antes da
meia-noite. Lucinho diz que isso é prova de autoridade divina, de que Jesus
está guiando cada um deles.
O vídeo abre para aplausos e gritos da
multidão dentro da Igreja Batista da Lagoinha. Centenas de pessoas celebravam
um pastor que acabava de contar como tinha formado uma milícia adolescente para
acabar com a celebração de outra fé.
Poder e
intolerância
Lucinho não é um caso isolado de
atitudes extremas e linguagem beligerante dentro da comunidade evangélica. O
vídeo do pastor é só uma entre diversas evidências de intolerância que têm se
acumulado.
Por exemplo: o pastor Cezar Cavalcante,
reitor da Faculdade Teológica Betesda, de Campinas (SP), disse, em entrevista à
Folha de S.Paulo, que tem todo o direito de pregar contra a umbanda e o candomblé
porque, afinal, são duas religiões “em pecado”.
Nessa toada extremista, a Igreja
Universal lançou uma campanha de evangelização chamada de Gladiadores do Altar.
Num vídeo recente, as pessoas, vestidas de soldados, dizem que “graças ao
Senhor, hoje estamos aqui prontos para a batalha”.
A batalha evangélica também extrapolou
o altar e chegou com força bruta à política. Em Brasília, deputados evangélicos
bloqueiam qualquer proposta que vá contra as suas crenças religiosas. Eles
rezam o pai-nosso no Congresso e propõem projetos para criminalizar críticas à
sua religião.
Além disso, a Câmara dos Deputados já
aprovou leis que aumentam a isenção de impostos a igrejas, livrando os pastores
de pagar tributos pelas comissões que recebem. Eles têm metas a alcançar.
Precisam conquistar novos fiéis e aumentar a arrecadação de dízimo. Logo,
são bonificados por seus líderes quando conseguem. E isso era tributado. Pela
proposta, não será mais. Ainda no pacote tributário, a Câmara anistiou multas
de R$ 200 milhões aplicadas pela Receita Federal a igrejas.
Tem mais. A Câmara estuda proposta que
inclui as igrejas entre as instituições que podem propor ações de
inconstitucionalidade no STF (Supremo Tribunal Federal). Hoje, apenas o
governo, a OAB, partidos políticos e alguns sindicatos têm esse direito. Se
passar, igrejas poderão contestar ações que aumentam direitos LGBT no País, por
exemplo. Elas ganhariam um poder institucional grande demais dentro de um
Estado que, a princípio, é laico.
Por fim, temos vários outros pastores
Lucinhos brotando pelo Brasil. Principalmente no Rio de Janeiro. O Rio é o
Estado com maior presença evangélica no País. E nos últimos meses passou São
Paulo no ranking de reclamações de intolerância religiosa. Há várias denúncias
de invasões de terreiros e agressões. Nas favelas da cidade, traficantes
convertidos proíbem umbanda e candomblé nos seus domínios.
Os líderes evangélicos sabem faz tempo
que têm poder. A diferença é que eles nunca tiveram uma base tão grande para
justificar esse poder. Nunca houve tantas pessoas para ouvi-los e seguir suas
orientações. E tudo por um motivo inusitado: a China.
Sim, a China. Nossas igrejas
evangélicas dão ênfase à chamada “teologia da prosperidade”. Por esse ponto de
vista, o sucesso deve ser procurado na vida terrena. E Deus devolve em dobro a
quem contribui com a igreja, fazendo o fiel ganhar dinheiro, acumular bens,
conquistar uma vida mais confortável.
Bom, o crescimento acelerado do PIB na
última década ajudou milhões de brasileiros a acumular bens, conquistar uma
vida mais confortável. Uma fatia gorda dessa população ou já era evangélica, ou
tornou-se no meio do caminho, e passou a fazer uma associação entre seu
progresso financeiro e a igreja. Se a carteira do fiel estava mais recheada,
era porque Deus estava agindo a favor dele. E se Deus estava com ele, era
graças à igreja, graças ao pastor. Nada mais natural do que confundir o alho do
crescimento econômico com o bugalho da teologia da prosperidade.
Mas fora do mundo espiritual o
benfeitor foi outro: o crescimento da China. A segunda maior economia do mundo
se tornou o comprador número um das nossas mercadorias agrícolas e minerais.
Isso fez chover dólar no Brasil, ajudando a girar as engrenagens do resto da
economia. Foi um dos maiores círculos virtuosos da nossa história, com inflação
sob controle, renda lá em cima e desemprego lá embaixo.
Mas aí veio a crise – a China perdeu o
fôlego, o governo federal pedalou na política econômica, a inflação saiu da
toca e o demônio do desemprego voltou a assombrar nossas almas. Nisso, a
corrente para frente da teologia da prosperidade começou a enferrujar. Afinal,
como justificar que Deus está tirando algo que essas pessoas suaram tanto para
conquistar? Essa é a teoria que alguns pesquisadores vêm montando para entender
o radicalismo evangélico recente. Com a crise econômica, é difícil sustentar a
teologia da prosperidade. A agenda moral, portanto, vem a calhar. Ela serve
para manter os fiéis unidos sob uma bandeira clara e agressiva. Nada mais
distante das origens humildes de nossa comunidade evangélica.
A disputa de
poder
Os evangélicos estão na política
brasileira desde meados do século 20. Mas foi só a partir de 1986 que eles
ganharam alguma força. Naquele ano, os parlamentares que fariam a primeira Constituição
pós-ditadura foram eleitos. Um impulso para a organização dos evangélicos foi o
boato, numa era pré-redes sociais, de que a Constituição faria do Brasil um
país oficialmente católico. Os evangélicos costumavam dizer que “crente não se
mete em política”. O receio de ter sua religião virtualmente banida fez com que
eles trocassem essa ideia pelo conceito de que “irmão vota em irmão”. E tomaram
gosto pela coisa. Em 1986, foram eleitos 32 deputados federais evangélicos.
Hoje, o Congresso tem 78 parlamentares que professam essa fé. Quase um em cada
seis deputados é evangélico, incluindo o presidente da Câmara dos Deputados,
Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Essa bancada gravita em torno da Frente
Parlamentar Evangélica, criada em 2003 e que hoje conta com uma das estruturas
políticas mais eficientes do País. Cada membro cede um assessor parlamentar à
frente, de tal forma que eles conseguem acompanhar cada movimento no Congresso.
Mais recentemente, essa organização ganhou uma bandeira unificada. Agora, além
da organização, eles têm uma agenda forte em comum: a defesa da família
tradicional.
Um estudo do teólogo Jung Mo Sung, da
Universidade Metodista de São Paulo, mostra que essa agenda é muito importante
para a nova classe média evangélica. Temas como aborto e legalização da maconha
seriam ofensas diretas a Deus – mesmo que a Bíblia tenha mais citações contra a
manipulação da fé do que contra a homossexualidade.
Por causa da força na sociedade, essa
bandeira está se expandindo para além do Parlamento. Já há associações
evangélicas de juízes, que vêm tentando bloquear algumas pautas que não
passariam no Congresso, mas têm aceitação no Judiciário – a união civil de pessoas
do mesmo sexo e uma legislação mais moderada para o uso de drogas, por exemplo.
O pastor Ricardo Gondim, mestre em
ciências da religião pela Universidade Metodista e pastor da Igreja Betesda, em
São Paulo, é um crítico dessa agenda extremista. “Hoje, a agenda evangélica é
reacionária. Eles só reagem, e isso vem dando unidade a essa parcela mais
radical”, diz Gondim, que é uma figura influente entre os evangélicos mais
liberais. “Isso é uma pena, porque divide o País e reforça o estigma de
que todo evangélico é um radical.”
De fato. Não faz sentido generalizar os
evangélicos. “É um erro achar que todos seguem uma agenda comum”, conta
Christina Vital da Cunha, professora de antropologia cultural da UFF
(Universidade Federal Fluminense) e pesquisadora da relação entre evangélicos e
política. “Poucas coisas unem todos os líderes da igreja. E todos, no final das
contas, competem por fiéis para seus templos. A agenda de defesa da família
tradicional é uma das poucas coisas que eles têm em comum”, explica ela.
Dois personagens, com forte ascendência
na Frente Parlamentar Evangélica, sinalizam essas semelhanças e diferenças.
Eles simbolizam as duas instituições com os projetos políticos mais claros.
Silas Malafaia, pastor da Assembleia de
Deus, usa as redes sociais e a TV para ofender adversários, pregar contra o
aborto, atacar homossexuais e pressionar candidatos a cargos públicos. É
admirado e temido por vários líderes evangélicos País afora. E adora ostentar
riqueza. Mostra o carro de meio milhão de reais e o relógio caríssimo como
provas de que Deus aprova o seu trabalho. Malafaia cresceu bastante a
partir de 2010, quando se transformou num dos principais opositores do PT, e
segue como oposição ao governo federal.
Do outro lado está Edir Macedo, da
Igreja Universal. Ele já mistura fé e política há muito tempo. Desde os anos
1990, seus programas de rádio e TV e seus templos são usados para ungir algumas
pessoas, atacar outras e defender a família tradicional. Um dos seus primeiros
alvos, há mais de 20 anos, foi o então eterno candidato à presidência Luiz
Inácio Lula da Silva (PT), que alguns dos seus pastores definiam como o
“demônio de quatro dedos”. Essa fase passou quando Lula foi eleito presidente
em 2002 e contou com apoio significativo da Universal. Desde então, Macedo tem
adotado uma atitude discreta em público e agressiva nos bastidores. Ele
emplacou ministros e aliados em ministérios e postos-chave dos governos Lula e
Dilma. Apesar de sua igreja não ser a maior do País, é a mais influente.
Uma prova desse poder se tornou
concreto. O Templo de Salomão, inaugurado em 2014 e sede da Universal, é o
maior templo religioso do Brasil. Ele custou R$ 685 milhões e tem uma área
quatro vezes maior do que o santuário católico de Aparecida, também em São
Paulo. A construção imita o templo do rei Salomão – só que numa versão
estupendamente maior que a do santuário original, descrito pela Bíblia como uma
edificação modesta. Na inauguração, a presidente Dilma, o governador Geraldo
Alckmin (PSDB) e o prefeito Fernando Haddad (PT) marcaram presença. Nenhum
deles é evangélico, mas quem se atreveria a desagradar Macedo?
Malafaia e Edir estão longe de ser
unanimidade entre os evangélicos, naturalmente. Vários pastores são contra a
mistura de fé e política e preferem fazer seu trabalho de formiguinha nos
recantos do País. E não são poucos.
Tanto que o número de evangélicos que
frequentam templos menores ou que não se identificam com uma igreja específica
explodiu nos últimos anos. As pessoas vão aos lugares onde se sentem bem. Na
prática, aumentou a infidelidade a uma igreja específica. É como uma playlist
da fé – você escolhe apenas as experiências que fazem mais sentido para você.
Ao mesmo tempo, a Universal, igreja mais identificada com política partidária,
foi uma das poucas a perder fiéis entre 2000 e 2010. Mais um ponto a favor
dessa tendência de uma comunidade evangélica mais difusa, menos disposta a
servir como massa de manobra ou curral de votos.
A moderação vem de dentro
Macedo, Malafaia e o pastor Lucinho lá
do início do texto são três entre os 42 milhões de evangélicos do Brasil, mas
de um ramo específico. Eles são evangélicos pentecostais – assim como outros
26,9 milhões de brasileiros. Segundo dados do World Christian Database, o
Brasil é o país com o maior número de seguidores desse ramo do cristianismo.
Nigéria, Estados Unidos, Indonésia e Gana completam o ranking dos cinco
maiores.
Os evangélicos pentecostais são
difíceis de entender num país majoritariamente católico, acostumado com uma
hierarquia rígida, com papa, bispos e padres, e com uma celebração clara – a
missa, organizada em torno do sermão do sacerdote. Evangélicos não têm uma
doutrina padronizada nem uma forma única de celebração – muito menos um “papa”,
claro. Qualquer um pode mudar de igreja e continuar sendo evangélico. Na
prática, dizer que alguém é evangélico é tão vago quanto dizer que alguém
nasceu na América do Sul, sem mencionar o país, a região, a cidade.
Há os evangélicos nascidos na reforma
protestante, como os luteranos, metodistas e calvinistas. Há os batistas, que
são anteriores à grande cisão com a Igreja Católica. Há a linhagem
fundamentalista, que surgiu nos EUA, no início do século 20, e pregava uma
interpretação literal do Velho Testamento, à moda do que fazem os judeus
ultraortodoxos. Por fim, há os evangélicos pentecostais – que são
basicamente os evangélicos que chamamos de evangélicos no Brasil. Muitas dessas
pessoas estão em igrejas que têm expoentes como Silas Malafaia e Edir Macedo.
Outros milhões, não.
Os evangélicos pentecostais nasceram
nos EUA, no começo do século 20. Eles são inspirados pelo dia de Pentecostes –
o quinquagésimo dia após a Páscoa, ocasião em que os apóstolos, segundo a
Bíblia, receberam do Espírito Santo a capacidade de falar línguas estrangeiras,
de modo que pudessem pregar a palavra de Jesus pelo mundo inteiro. Pentecostais
acreditam em curas espirituais e profecias. E, além de conservadores, são
fortemente missionários.
Nos anos 1970, surge o
neopentecostalismo – uma versão mais midiática e estridente dos pentecostais.
Eles dão ênfase maior à cura – espiritual e física – e, principalmente, à
teologia da prosperidade. Por isso mesmo os neopentecostais ganharam tanta
força no Brasil nos anos de estabilidade e crescimento, já que entenderam tal
bonança como prova da graça divina.
Mas a teologia da prosperidade e a
posição reacionária não são as únicas bandeiras, claro. Na verdade, elas até
ofuscam outras causas evangélicas, como a assistência social e a organização
comunitária de ajuda mútua. No fim das contas, colocar todo evangélico no
balaio conservador de Silas Malafaia e Edir Macedo é como dizer que todo
brasileiro foi corintiano enquanto Lula, que torce para o time do Parque São
Jorge, foi presidente. Há muita vida além do fanatismo. Basta olhar para a história.
Nos EUA, um país majoritariamente
evangélico, vários líderes comunitários são pentecostais ou de outros ramos
evangélicos. Martin Luther King, líder do movimento de direitos civis nos
anos 1960, era pastor. No Brasil, vários pastores vêm abrindo seus templos para
gays e lésbicas. Essa quantidade enorme de pessoas, muitas delas silenciosas,
sofrem um duplo preconceito. Para os evangélicos radicais, elas não são
evangélicas o suficiente. Para o restante da sociedade, são fanáticos.
Portanto, se há algum caminho para
impedir o crescimento dessa agenda agressiva, ele passa necessariamente por
esses evangélicos moderados. São os milhões de pessoas que seguem as palavras
que Jesus disse quando alguns radicais queriam matar uma mulher a pedradas:
“Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”. Esses evangélicos são os
mesmos fiéis que o pastor Lucinho chama de “palhaços”. Na vida real, porém,
eles não têm nada de ridículos. São nada menos que a chave para a construção de
um Brasil tão evangélico quanto tolerante.
Fonte - Revista Super Interessante
Estudando as Seitas Neopentencostais
Extremismo evangélico
Nenhum comentário:
Postar um comentário